domingo, 28 de janeiro de 2007

David Mourão-Ferreira

Teia

Se da baba o insecto faz a teia,
se com choro porém não sei prender-te,
do céu, que era de cinza, direi verde,
e da terra e das lágrimas areia.

E da forma direi que foi ideia,
para que à noite o corpo não desperte,
do perdido direi que não se perdese ao menos nestes versos se encadeia.

Do cabelo se loura, direi pretos,
do amor que sofri direi soneto,
ante a luz tão corpórea que o invade...

Nas rodas da ficção ficarás presa e acordarás, mais tarde, na surpresa
de ser outra por toda a eternidade.

Ternura

Desvio dos teus ombros o lençol,
que é feito de ternura amarrotada,
da frescura que vem depois do sol,
quando depois do sol não vem mais nada...

Olho a roupa no chão, que tempestade!
Há restos de ternura pelo meio,
como vultos perdidos na cidade
onde uma tempestade sobreveio...

Começas a vestir-te, lentamente,
e é ternura também que vou vestindo,
para enfrentar lá fora aquela gente
que da nossa ternura anda sorrindo...

Mas ninguém sonha a pressa com que nós
a despimos assim que estamos sós!

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